PAULO CAMINHA (*)
Jornalista correspondente
Confesso: não fui à escócia fazer turismo, ouvir gaita de fole,ver saiote de homem, mulher de cabelo vermelho, ovelha lanuda, nobre decadente, gado de raça ou castelo medieval.Digo a verdade:só fui a velha Escócia para conferir (e degustar) um dos maiores prazeres da vida civilizada: o bom, generoso e inspirador uísque escocês legítimo: o puro e respeitável scotch – a bebida que (segundo as últimas estatísticas da ONU) “faz a cabeça”, diariamente, de mais de oitenta e sete milhões de pessoas em todo o mundo.Pessoas que não acreditam que o álcool, quando bem tomado, seja uma doença do corpo ou da alma: mas sim um encanamento, no sentido do termo, de espírito:um encanamento talvez do “Espírito” da própria humanidade: de seu inconsciente coletivo.Não um vício.Mas uma virtude.Tim-tim.
Em Londres já havia bebido em pubs sofisticados e fechadíssimos como Saint-James, o Carlton ou o Pall Mall, mas prefiro os bares da velha Escócia, eles são mais democráticos e populares: neles todo mundo bebe em pé, serve-se à vontade, paga quando quer, fala mal do governo e conta piadas infames. Os pubs da Escócia abrem às onze da manhã, fecham às três da tarde, reabrem às quatro e fecham definitivamente às onze e meia da noite.Quando falta alguns minutos para a hora fatal, o barman gringo bem alto: “Time! Gentleman! Please!
Então todos tratam de esvaziar os copos, porque dali para frente a lei prevê punições (não tão severas como a nossa “Lei de Segurança”) para quem ainda insistir em bebericar.Com um horário tão apertado para “fazer a cabeça” é explicável que os escoceses bebam o máximo de tempo.E mais: prefiram bebidas fortes: fulminantes, de bate-pronto.É aí que o uísque entra na história.Há 60 anos atrás o uísque era uma bebida ainda pouco consumida no mundo.Perdia para o vinho, o vermute, o rum, a champanhe – e até mesmo para o maldito gim.Hoje ele é absoluto e chega a ser destilado e até fabricado no Japão, Paraguai, Iêmen do Sul, Nova Zelândia...e Brasil...Mas, depois de visitar as incríveis destilarias da velha Escócia, qualquer um chega à conclusão que é literalmente impossível de fabricar uísque fora do Reino Unido.
Por motivo muito simples: a fabricação de uísque exige a presença da turfa escocesa (material combustível ainda no primeiro estágio de formação do futuro carvão mineral) cuja fumaça, passando através dos grãos de cevada, é que vai dar ao uísque seu famoso sabor, levemente queimado.Não há uísque sem a fumaça da turfa escocesa.Nunca! Jamais! Em tempo algum! Em lugar algum nenhum! Mesmo porque a turfa escocesa tem a sua exportação proibida.Crianças: o que se bebe por aí pode até ser uma aguardente muito honesta e saborosa (dependendo do paladar de cada um), mas digo e repito: não é uísque.
Diz a lenda que foi São Patrício (simpático santarrão irlandês) quem inventou a destilação do scotch.O fato é que o clima frio e inclemente da Escócia permitia que ali se plantasse apenas um tipo de cereal altamente resistente: a cevada, com a qual alimentava o gado, faziam seus pirões e tiravam um tipo de bebida chamada “wyskebaugh”, uma espécie de cerveja enfumaçada que ficava depositada nos porões dos castelos medievais e nos navios que sangravam os mares do Norte.Há pouco mais de cem anos é que os fabricantes tiveram a genial idéia de misturar essa bebida do Norte com outra aguardente mais amena, fabricada no Sul, surgindo então o Blended que conserva o sabor da bebida primitiva, com aspecto visual mais agradável e palatável.A base do bom uísque é sempre o grão: finíssima cevada que só cresce nos planaltos altos e frios.Depois de bem lavadas, as sementes ficam de molho por três dias.A seguir o grão é escorrido, espalhado num amplo terreiro e levemente borrifado com água quente – é o que permite que se inicie o processo de germinação.Depois é colocada para secar por mais de três dias sobre uma tela cujo combustível – repito – é a famosa turfa marítima escocesa, da qual emana uma fumaça lodada, aromatizada e insubstituível.Depois de seco, o malte, assim obtido, fica em repouso um tempo para “curar”.A seguir ele a ser misturado com água quente para a fermentação.A mistura segue então para os alambiques de cobre, a fim de ser destilada.Um vapor sobe pelos complicados tubos – é resfriado, condensado – e o álcool então se separa do líquido fermentado.O produto da primeira destilação volta novamente aos alambiques e mediante adição de água cristalina nas nascentes escocesas vai para os imensos barris de carvalho ou de cerejeira, conforme o status -, onde repousa (nobremente) durante três longos anos.Antes de entrar nos barris ainda era uma bebida branca, transparente, incolor.O tom caramelado é obtido através da qualidade da madeira do tonel da qual envelhece. Nada de corantes artificiais.Nada de essências gustativas.Uísques de luxo chega ficar dez (ou vinte) anos nos barris de cerejeira.Transformam-se em bebidas mais licorosas – como o meu preferido, o “ Royal Salute”, que só deve ser tomado após o jantar, sem gelo.Dentre as marcas de combate que se permite, serem usufruídas com gelo, eu recomendaria “Lagavulin”, forte, denso e seco.Quando bebido em jejum, no entanto, ele á capaz de ter efeito altamente inspirador, quase psicodélico.
Para quem é amigo do velho fígado seria interessante dedicar-se a uísques mais fracos, mais claros, como o Mc Callun’s, que aliás era o preferido do legendário escritor irlandês James Joyce e Carlos Acuio, talvez o homem que mais entendia de uísque, autor do livro “Bebendo e Andando”.Tim-tim.
(*) PAULO CAMINHA é jornalista e doutor em Relações Internacionais pela Universidade de São Paulo (USP). Atualmente é jornalista correspondente.
E-mail: paulo_caminha1@yahoo.com.br
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